Pintadas sobre painéis de madeira ou sobre a tela, em forma de quadros ou pendões, as bandeiras das Misericórdias são, desde os primórdios destas instituições, os seus símbolos exteriores mais representativos. A iconografia utilizada, habitualmente e de forma generalizada, consubstancia as virtualidades espirituais da sua origem e ajustam-se às características fundamentais destas instituições.
Num dos lados, a parte da frente, é representada a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia, com um vasto manto azul celeste, aberto por mãos de anjos, sob o qual se abrigam representantes de todos os grupos sociais. Do outro lado representa-se, quase sempre, a imagem de Nossa Senhora da Piedade.
A criação da imagem da Virgem da Misericórdia remonta ao começo do século XV, quando, em consequência da peste, o terror da doença impeliu os cristãos para a necessidade de protecção sobrenatural, que se consubstanciou no recurso à protecção de Nossa Senhora. Surgem, assim, as primeiras pinturas, representando a imagem da Virgem Maria, que resguardava das «flechas» da peste os fiéis de todas as condições sociais, do Papa e Imperador aos mais humildes, abrigados sob o seu manto. Esta representação da Virgem, sob a denominação da Virgem do Manto Protector ou Virgem da Misericórdia, estava largamente difundida por toda a Europa, quando foi fundada a Misericórdia de Lisboa.
Não surpreende, pois, que tenha sido adoptada esta invocação e a respectiva imagem para Padroeira da nova instituição, que, conforme se declara no Prólogo do seu Compromisso, tinha como protectora: “a Madre de Deus, Virgem Maria da Misericórdia”. [1] A representação de Nossa Senhora da Piedade, no outro lado da bandeira, teria tido em vista assinalar que a fundação da Misericórdia de Lisboa se formalizou na Capela de Nossa Senhora, sob a mesma invocação, sita no claustro da Sé lisboeta. Naturalmente, tal como aconteceu com o seu Compromisso, todas as Santas Casas de Misericórdia assumiram, nas suas bandeiras, os símbolos da Misericórdia de Lisboa.
Deste modo, nas figuras que tradicionalmente aparecem representadas, sob o manto protector da Virgem da Misericórdia, encontramos, em primeiro plano: um Papa, lembrando Alexandre VI, que confirmou o primeiro Compromisso da Santa Casa de Lisboa; um Rei, em homenagem a D. Manuel, ou D. João III; uma Rainha, em homenagem a D. Leonor. Em segundo plano encontram-se figuras de príncipes, nobres, clérigos e frades, cavaleiros, vassalos e pessoas de aspecto humilde e sofredor. Sob pressão da Ordem da Santíssima Trindade, em 12 de Setembro de 1575, a Santa Casa de Lisboa resolveu que se representasse na bandeira, além do Rei e da Rainha, um religioso da mesma Ordem, de aspecto grave e macilento, ajoelhado e de mãos levantadas, acompanhado das letras F.M.I. – Frei Miguel Instituidor – numa alusão directa a Frei Miguel Contreiras.
Filipe III de Espanha por alvará de 26 de Abril de 1627 determinou que todas as Santas Casas seguissem o exemplo da Misericórdia de Lisboa, mandando acrescentar a representação do frade trino nas suas bandeiras. [2] Desta forma se assinalava publicamente que a Virgem Mãe protegia as várias condições sociais, fraternalmente unidas na Irmandade da Misericórdia, característica do verdadeiro espírito cristão que esteve na sua origem e expressa na conjugação dos dois símbolos marianos: do sofrimento da Virgem da Piedade à protecção da Virgem do Manto.
Com as características acima descritas, chegou até aos nossos dias e está exposta na Sala do Definitório, uma bandeira da Santa Casa da Misericórdia de Santarém, pintada sobre tela, da autoria de Henrique José da Silva, datada de 1812. [3]
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[1] Vd. Misericórdias Portuguesas, nº 9, Setembro, Viseu, Secretariado Nacional da União das Misericórdias Portuguesas, 1980, p. 5.
[2] Em sessão do Definitório de 13 de Setembro de 1626, foi decidido que se “pusessem na bandeira desta Casa, na borda do hábito do Padre Frei Miguel [Contreiras], que nela anda pintado, as três letras que declarem seu nome, conforme andam na bandeira de Lisboa [.]”. Vd. AHSCMS, Livro nº 1005, fls. 200v.-201v.
[3] No livro de despesa deste ano, consta uma verba respeitante a tumba, painel [bandeira] e mais pertences para o enterramento dos Irmãos, no valor de 217$290 réis. (137$490 em metal e 79$800 em papel). Vd. AHSCMS, Livro nº 721, fl. 169v.
in “Santa Casa da Misericórdia de Santarém – Cinco Séculos de História”, Martinho Vicente Rodrigues, Santarém, 2004, págs 61-63