A tradição das instituições de assistência aos mais necessitados, na doença e na pobreza, existe, há mais de cinco séculos, em Portugal, onde atingiu uma eficácia e um prestígio relevantes, pelo seu carácter humano e, mais ainda, pela sua adaptação constante, às diferentes realidades sociais, económicas e políticas de cada época. A origem destas instituições sócio-caritativas remonta ao período da Alta Idade Média, época em que inumeráveis Confrarias de caridade e solidariedade foram instituídas, um pouco por todo o mundo cristão.
Em Portugal, a sua expansão dá-se logo desde o início da Nacionalidade. De uma forma geral, surgiram apoiadas nas ordens religiosas que, pelo seu próprio carisma, se dedicavam a socorrer os mais humildes e necessitados. São exemplo dessa dedicação, a ordem franciscana, a ordem dominicana e a ordem trinitária.
Também as corporações medievais instituíram, ou administraram, estabelecimentos de apoio aos seus membros e aos mais necessitados: albergarias, hospitais, gafarias e mercearias. Destacaram-se na administração dos hospitais medievais portugueses, as Confrarias do Espírito Santo, dependentes do Hospital de Roma, e as Confrarias de Rocamador, dependentes da arquiconfraria existente em França. Desde 1193 que se instalaram no Reino as Confrarias de Santa Maria de Rocamador, cujos irmãos prestaram relevantes serviços nos hospitais medievais portugueses. Em Santarém, o primeiro convento dos Padres “Trinos” foi fundado pelos anos de 1208.
Frei Miguel de Contreiras, religioso desta ordem, terá sido um dos primeiros impulsionadores da obra de instituição das Misericórdias, em conjunto com a Rainha D. Leonor. Assim sendo, é de admitir, sem dificuldade, que não descurariam, desde logo, a fundação de uma instituição destas em Santarém. A Crónica da Província de Santa Maria da Arrábida, parece confirmar esta suposição, uma vez que Fr. Martinho de Molina aqui se teria deslocado, encarregado dessa missão, por Fr. Miguel Contreiras.
Quanto à data da fundação da Confraria da Misericórdia de Santarém podemos afirmar que remonta, pelo menos, ao ano de 1500. Neste ano, D. Manuel I concedeu à Confraria vários alvarás, datados de 20 de Março, em cujas introduções se pode ler: “Nós El-Rei fazemos saber a quantos este nosso alvará virem que a nos praz havendo-o assim por serviço de Deus e nosso que a Confraria da Misericórdia que ora novamente foi feita desta nossa Vila de Santarém […]”. Como adiante se verá, entre outros privilégios, o monarca concedia autorização para que os Irmãos da Confraria pudessem retirar, em cada ano, no dia de Todos-os-Santos, os justiçados na forca e as suas ossadas, para lhe dar enterramento cristão, no seu cemitério.
Durante muitos anos, reuniu-se a Confraria em instalações cedidas pelo Hospital de Jesus, fundado por João Afonso, tendo passado para casas próprias, em data incerta. Sabemos que o terreno em que foi edificada a Igreja da Misericórdia, a Casa do Despacho e outras dependências, foi adquirido, em data desconhecida, mas por troca de outros bens de raiz, já anteriormente legados à Santa Casa.
Os bens entregues para troca foram: um assento de casas de Fernão de Melo, que foi adquirido por troca de um casal no lugar do Cartaxo, legado à Misericórdia por Pedro Alves, do mesmo lugar, com o encargo pio de três missas anuais; umas casas, por troca de uma terra na Ladeira, legado de Jácome Fernandes; umas casas por troca de uma terra no campo de Trava, legado de Luís Mendes.
Desde sempre os estatutos das Misericórdias portuguesas foram chamados Compromissos. Modelados, todos eles, pelo primeiro Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, estes documentos fixavam os objectivos que os seus membros se comprometiam a cumprir e que justificavam a fundação da respectiva Irmandade, o número e qualidade dos Irmãos, a forma da sua organização administrativa e os deveres e direitos que competiam aos Irmãos Mesários na administração destas instituições.
Também a Santa Casa da Misericórdia de Santarém, com a aprovação régia da sua fundação seguiu o Compromisso que se encontrava em uso na Santa Casa de Lisboa, o de 1498.
Por mais de sete dezenas de anos, regeu-se a Santa Casa da Misericórdia de Santarém pelo Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa até que, em 1577, resolveram o Provedor e os Irmãos Mesários que a Irmandade tinha necessidade de um regimento que atendesse às suas especificidades e características próprias, que com dificuldade se adaptavam ao estatuído no Compromisso que regia a Irmandade.
O novo Compromisso, redigido em 28 Capítulos, foi aceite e confirmado pelo Cardeal-Rei, D. Henrique, por alvará de 8 de Julho de 1577:
Durante cerca de trezentos anos, foi por este Compromisso que se regeu a Santa Casa da Misericórdia de Santarém. Em síntese, dispunha o novo Compromisso que era “[…] fundamento desta Santa Confraria e Irmandade cumprir as Obras de Misericórdia […] que são catorze: são sete espirituais e sete corporais.”
Das «espirituais» eram enumeradas as seguintes:
Ensinar aos simples;
Dar bom conselho a quem o pede;
Castigar com caridade os que erram;
Consolar os tristes desconsolados;
Perdoar a quem «nos errou»;
Sofrer as injúrias com paciência;
Rogar a Deus, pelos vivos e pelos mortos;
Quanto às «corporais», por sua vez, eram referidas:
Remir os cativos e visitar os presos;
Curar os enfermos;
Cobrir os nus;
Dar de comer aos famintos;
Dar de beber aos que «hão» sede;
Dar pousada aos peregrinos e pobres;
Enterrar os finados;
“As quais catorze obras de misericórdia se cumprirão quanto for possível.”
O espírito cristão da caridade, o amor ao próximo, impregnado de profunda espiritualidade evangélica, informavam os princípios da Irmandade, sendo o seu objectivo principal viver esses princípios na prática concreta das obras de misericórdia, na forma em que a igreja católica as entendia, como se infere dos documentos fundamentais que regularam o funcionamento desta Santa Casa.
Logo após a sua fundação, pelo menos desde 1500, D. Manuel I outorgou um número significativo de diplomas, concedendo à Santa Casa de Santarém os privilégios já anteriormente concedidos à Santa Casa de Lisboa.
Sem a pretensão de sermos exaustivos, aqui se deixam os sumários de todos os diplomas que, nestas circunstâncias, foi possível encontrar:
a. Lisboa, 1500, Março, 20 – Alvará que concedia à Confraria o privilégio de, em cada ano e no dia de Todos-os-Santos, poder retirar os justiçados pela forca e enterrar as suas ossadas, em cemitério próprio.
b. Lisboa, 1500, Março, 20 – Alvará que concedia à Confraria liberdade para participar, ou não, nas procissões que se realizassem na Vila não podendo ser obrigada a estar presente.
c. Lisboa, 1500, Março, 20 – Alvará que obrigava os oficiais do Hospital – não diz qual, mas presume-se ser o de Nosso Senhor Jesus Cristo, já que em Lisboa era o de Todos-os-Santos – a receber os doentes pobres, para quem a Confraria haja requerido o seu internamento, devendo este ser precedido de exame médico. Estabelece penas para o seu não cumprimento.
d. Lisboa, 1500, Março, 20 – Alvará que proibia a realização de peditórios destinados aos doentes pobres e indigentes, cujo sustento compete à Confraria, para evitar falsos peditórios.
e. Lisboa, 1500, Março, 20 – Alvará que estabelecia a competência dos Mordomos da Confraria e a sua responsabilidade da limpeza da cadeia.
f. Lisboa, 1500, Março, 20 – Alvará que concedia ao «procurador dos feitos» da Confraria, prioridade na audição em todas as audiências em que deva ser ouvido.
g. Lisboa, 1500, Março, 25 – Alvará que proibia a requisição, pelos oficiais da justiça, do porteiro da Confraria, encarregado de fazer as diligências, em nome dos presos pobres, assistidos pela mesma.
h. Lisboa, 1500, Março, 25 – Alvará que concedia à Confraria, quatro quintos dos tecidos destinados a serem queimados, por serem considerados falsos, isto é, não aprovados pelo juiz do ofício, para que pudessem mandar confeccionar vestuário destinado aos pobres.
i. Lisboa, 1500, Março, 27 – Alvará que obrigava, os oficiais de justiça, a resolver, no prazo de três dias, a partir da data da sentença, todos os despachos referentes aos presos pobres, assistidos pela Confraria, para não prolongar a sua estadia na cadeia.
j. Lisboa, 1500, Março, 28 – Alvará que recomendava aos oficiais de justiça que não dificultassem aos Mordomos e oficiais da Confraria, a visita aos presos pobres e que dessem a maior urgência no despacho dos requerimentos que, sobre esses presos, forem feitos.
k. Lisboa, 1500, Abril, 10 – Alvará que ordenava ao juiz e Tesoureiro da aposentadoria, o pagamento imediato do dinheiro que por esmola fosse doado à Confraria, pelas pessoas a quem a aposentadoria era devedora, por utilização de diversas serventias.
l. Lisboa, 1500, Abril, 10 – Alvará que mandava que fosse a Confraria a pagar, aos doentes pobres, a esmola diária de oito réis e o «mantimento» da «hospitaleira», quando tal não fosse feito pelo Provedor do Hospital de Jesus Cristo. Quando tal acontecesse deveria, de imediato, tomar contas ao Provedor do hospital. Achando-se que não tinha pago, por má fé, ficava sujeito a penas pecuniárias, a pagar do seu bolso e que revertiam para a Confraria.
m. Lisboa, 1500, Junho, 8 – Alvará que concedia à Confraria a propriedade do dinheiro recebido das multas aplicadas pela realização de festas ou bodas, em contravenção com o disposto nas ordenações – (Ordenações Manuelinas Liv. V, Títulos XXXIII e XIV). Os confrades não ficavam isentos das respectivas penas.
n. Lisboa, 1500, Novembro, 26 – Alvará que concedia à Confraria prioridade no pagamento, pelo almoxarifado, do dinheiro dado como esmola, por pessoas que tivessem tenças a receber.
o. Lisboa, 1500, [Março?], 21 – Alvará que concedia autorização aos oficiais e Mordomos da Confraria para a escolha de um lugar onde pudessem construir uma forca levadiça para os condenados que poderiam enterrar logo após a execução, para não ficarem expostos.
p. Lisboa, 1503, Julho, 21 – Carta régia que concedia à Irmandade da Misericórdia de Santarém, os mesmos privilégios de que gozava a Misericórdia de Lisboa, regendo-se pelo seu Compromisso.
q. Almeirim, 1504, Janeiro, 8 – Alvará que concedia o privilégio a 13 pessoas, denominadas Mamposteiros, que recolhiam as esmolas para a Irmandade, no «termo» da vila. Enquanto Mamposteiros estavam isentos de cargos e serviços do Concelho. Os privilegiados pertenciam aos seguintes lugares: Azinhaga, Golegã, S. Vicente do Paúl, Vaqueiros, Santa Maria de Achete, Rio Maior, São Lourenço, Abitureiras, S. Pedro de Arrifana, Almoster, Pontével, Cartaxo e Santa Maria de Valada.
r. Lisboa, 1504, Abril, 24 – Alvará pelo qual se ordenava que fossem entregues à Irmandade os valores encontrados nas pessoas falecidas, desde que não se lhe conhecessem herdeiros. Apresentando-se estes, mais tarde, os valores seriam devolvidos.
s. Lisboa, 1504, Abril, 24 – Alvará que concedia aos Irmãos Mesários o privilégio de uso e porte de armas – espadas e punhais – quando de deslocassem, de noite, para visitar os pobres.
t. Almeirim, 1507, Novembro, 3 – Alvará que isentava da obrigação de aposentadoria os 13 oficiais da Confraria.
Estes alvarás foram todos confirmados por el-rei D. Sebastião. O documento original desta confirmação encontra-se no Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Santarém, com a assinatura autógrafa do monarca.